domingo, 24 de maio de 2015

Será que a moralidade pode existir sem um legislador moral?

Sam Harris talvez proteste: "Por que é necessário um legislador
moral para se reconhecerem o bem e o mal?". Pela simples razão de
que uma afirmação moral não pode ser abstração. O indivíduo que
moraliza pressupõe valor intrínseco em si e transfere valor intrínseco
para a vida de outro e assim ele considera a vida digna de proteção
(como nos exemplos que Harris dá, a saber, estupro, tortura,
homicídio e catástrofes naturais). Um valor transcendente deve
provir de uma pessoa de valor transcendente. No entanto, num
mundo em que existe somente matéria não pode haver nenhum
valor intrínseco. Em termos filosóficos, pode-se dizer assim:
• Os valores morais objetivos só existem se Deus existir.
• Os valores morais objetivos de fato existem
[uma questão que Harris reconhece em sua Carta],
• Logo, Deus existe.
Uma análise dessas premissas e da sua validade nos dá um forte
argumento para a existência de Deus. Com efeito, J. L. Mackie,
um ateu que vocifera bastante e questiona a existência de Deus
com base na realidade do mal, admite pelo menos essa relação
lógica, ao dizer: "Podemos alegar [...] que características objetivas,
intrinsecamente normativas, alheias às naturais, constituem um
grupo de qualidades tão estranhas que pouco provavelmente teriam
surgido do curso normal dos acontecimentos sem um Deus todo-
-poderoso que as criasse".31
Desse modo, temos de concordar com a conclusão de que nada
pode ser intrínseco e normativamente bom se não houver tambémum Deus que tenha criado o Universo desse modo. Esse, entretanto,
é justamente o Ser cuja existência Harris nega com base na
existência do mal.
Será que a razão sozinha pode produzir um sistema moral?
Postulando um mundo desprovido de qualquer sistema moral,
Harris escolhe a "razão" como origem de sua convicção da não
existência de Deus ao mesmo tempo que conserva a crença em
um código moral. Pois, então, ouça o que diz o filósofo canadense
Kai Nielsen, um fecundo defensor do ateísmo: "A razão aqui não
resolve. O quadro que descrevi não é nada agradável. Refletir
sobre ele me deprime. A pura razão prática, mesmo com um bom
conhecimento dos fatos, não o leva a inferir a moralidade".32
Assim, em seus próprios termos ateístas, Sam Harris está se
comprometendo com um raciocínio que só é válido se Deus existe,
ou está fazendo declarações ilógicas.
Ainda falta ele dizer que Deus viola suas próprias leis e, portanto,
é mau ou contraditório. Fazendo isso, porém, ele estaria afirmando
uma capacidade inata de reconhecer a violação da própria lei moral
de alguém como uma falha moral.
Harris está pressupondo claramente que Deus mata pessoas
inocentes (ver Carta, 52-34) e, desse modo, viola suas próprias
leis. Vamos admitir isso por ora. Por que matar inocentes é
errado? É errado porque Deus diz que é? É errado porque Harris
acredita que não se deve matar inocentes? Se aceitamos a
primeira hipótese, a saber, que é errado porque Deus diz que é,
então Deus se contradiz com seus atos — ao dizer que é errado
matar inocentes e ainda assim matá-los. Harris, todavia, não está
isento da responsabilidade de provar seu argumento de que os
inocentes não devem ser mortos. Para acreditar genuinamente
nisso, ele precisa pressupor um sistema moral que sustente o
valor intrínseco da vida inocente. Com base no seu ponto de
partida ateísta, entretanto, ele não tem fundamentos para esse
sistema moral.
Isso deixa-nos com uma terceira opção — que Harris ignorou
completamente ou se recusou a analisar: ele está fazendo uso
seletivo da revelação bíblica de justiça e vingança, ao mesmo tempo
que ignora a grande história em que ela se enquadra e que lhe dá
sentido. Sua tese moral distorce as questões mais refinadas da
Bíblia e ao mesmo tempo nega seu todo.
O cristianismo ensina que cada vida tem valor supremo. Nosecularismo, embora não haja nenhum valor essencial para a
vida, o ateu escolhe subjetivamente determinados valores para
aclamar. Todo dia se joga esse jogo no campo de batalha relativista.
Entretanto, os relativistas recusam-se a dar ao outro lado o
benefício de jogar segundo as mesmas regras deles.
Não é possível termos livre-arbítrio sem sofrer
Se Sam Harris deseja falar sobre sofrimento, ele precisa falar
sobre a autonomia humana em oposição à história de Deus de
por que somos como somos. Embora o sagrado se nos ofereça,
o desejo é arrogante e se recusa a submeter-se à autoridade de
Deus. Nenhum de nós é diferente em nada de nenhum outro nem
melhor em nada. Alguns apenas mascaram melhor sua verdadeira
natureza. A história do sofrimento não pode ser contada sem a
história da soberba humana e de nossa necessidade de que Deus
nos transforme o coração.
 Será que Harris está exigindo que Deus crie em nós a
capacidade de amar sem nos dar a opção de rejeitar esse amor,
o desejo de confiar e ser confiado sem a liberdade de duvidar, o
privilégio de fazer uma escolha sem a responsabilidade de aceitar as
conseqüências dessa escolha? Acho lamentável a sagacidade com
que ele emprega a linguagem para varrer para debaixo do tapete a
situação humana. Ele considera Deus, "se é que [ele] existe, o mais
produtivo dos fazedores de aborto" [Carta, 38), dizendo que mesmo
uma só morte nas mãos de Deus é inaceitável, enquanto ele próprio
vira o rosto para o outro lado enquanto milhões de crianças não
nascidas são abortadas.
Direito moral de quem? Nosso ou de Deus?
Faz alguns anos, eu e o célebre astrônomo Hugh Ross
estávamos participando de um programa de entrevistas de rádiona Ohio State University. Estávamos falando sobre algum tema
relacionado com a origem do Universo quando uma mulher
enraivecida surgiu e começou a nos atacar com uma saraivada de
palavras. A acusação dela era de que nosso diálogo na verdade não
era nada mais que uma cortina de fumaça para dizer o contrário
do caso Roe versus Wade33 e tirar o direito da mulher fazer aborto.
Lembre-se, estávamos falando acerca da origem do Universo. Em
todo o seu discurso ela insistiu reiteradamente: "É meu direito moral
fazer o que eu decidir fazer com meu corpo!".
Por fim, quando ela parou para tomar fôlego, eu disse: "Tudo
bem, senhora. Já que a senhora falou sobre o assunto, eu
gostaria de fazer uma pergunta. Será que a senhora pode me
explicar uma coisa? Quando um avião cai, e algumas pessoasmorrem enquanto outras sobrevivem, um cético põe em questão
o caráter moral de Deus, dizendo que ele escolheu alguns para
sobreviver e outros para morrer por mero capricho. A senhora,
contudo, alega que é direito moral seu decidir se a criança no seu
ventre deve viver ou morrer. Isso não parece estranho? Quando
Deus decide quem deve viver e quem deve morrer, ele é imoral;
quando a senhora decide quem deve viver ou morrer, é seu
direito moral".
Fez-se um silêncio tal que se poderia ouvir um alfinete caindo
no chão.
Um indivíduo pode dizer com desdém que não enxerga nenhuma
ordem moral. Eu, porém, desconfio veementemente de que a
verdadeira questão não é a ausência de ordem moral no mundo,
mas, sim, a insistência das pessoas em decidir por si mesmas o que
é bom e o que é ruim, a despeito do que sabemos intuitivamente
ser verdadeiro. Vamos ser sinceros. Para crer que não existe
nenhuma ordem moral, é preciso pressupor o conhecimento de
como seria uma ordem moral, se ela existisse. Por que, então, a
opinião de uma pessoa de como seria uma ordem moral deve ser
mais autêntica que a opinião de qualquer outra? Além disso, se de
fato não há nenhuma ordem moral, qualquer tentativa de aplicar
alguma é puro pragmatismo, sujeito a questionamentos por outras
razões pragmáticas.
Por outro lado, antes de acusar o Deus da Bíblia de violar sua
própria lei moral, qualquer pessoa não deveria considerar o fato de
que o mesmo Deus que criou o código moral também dá os motivos
por que permite a dor e o sofrimento? Por que discutir, mesmo a
título de argumentação, a possibilidade de Deus ter dado um código
moral e ignorar o raciocínio que o acompanha?
 Tirado do livro A Morte da Razão de Ravi Zacharias


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